3.6.4. As queimadas

3.6.4.1. Importância

Já evocado acima, quando da discussão das práticas indígenas tradicionais, o problema das queimadas constitui um fato generalizado na região intertropical, onde sua dimensão é constante motivo de preocupação da comunidade internacional.

Para a agricultura brasileira, a utilização do fogo é uma prática constante, tanto no contexto dos sistemas de produção mais primitivos como nos sistemas agrícolas mais modernos.

Todas as missões para trabalho de campo realizadas durante o desenvolvimento deste projeto mostraram que as queimadas devem ter um impacto fundamental sobre a fenologia da vegetação e sobre a dinâmica das populações acridianas.

A importância das queimadas na Chapada dos Parecis é antes de tudo atestada pelos testemunhos conseguidos localmente. Vários produtores ouvidos acentuaram a importância das queimadas no contexto das zonas de savanas ("campo nativo"). Elas são destinadas, segundo as práticas indígenas, a favorecerem a caça. Nas zonas de pecuária, permitem oferecer ao gado o rebrotamento da vegetação durante a estação seca. Além disso, mesmo as culturas modernas de cana, algodão e cereais utilizam o fogo como prática usual.

Os recursos oferecidos pelo sensoriamento remoto (satélites NOAA/AVHRR e LANDSAT-TM) permitiram detalhar a amplitude dessas queimadas na área de pululações de R. schistocercoides no Mato Grosso.

Os dados relativos à detecção, à localização e à dinâmica espaço-temporal das queimadas foram adquiridos com base nas imagens NOAA/AVHRR/HRPT, durante os meses de junho a outubro dos anos de 1991 a 1995. A aquisição diária dos dados AVHRR foi realizada pela antena do INPE em Cachoeira Paulista, SP. Estes dados, corrigidos geometricamente, foram tratados por um programa para permitir a detecção dos pontos de fogo. Ao fim de cada semana, no processo de mapeamento desses dados, foi elaborada uma grade (com malha de 1,5o de latitude x 1,0o de longitude), recobrindo todo o território brasileiro, sendo os pontos de fogo totalizados para cada elemento da grade. Maiores detalhes dos aspectos metodológicos desse monitoramento orbital das queimadas podem ser encontrados em MIRANDA et al. (1994), SETZER et al. (1992) e TAKEDA et al. (1994). A grade, enviada à Embrapa Monitoramento por Satélite via rede de comunicação eletrônica foi superposta às cartas de vegetação e de uso das terras da área de estudo, através de tratamento georreferenciado da informação.

As cartas dos pontos de fogo foram objeto de análises mensais e interanuais, revelando que a amplitude das queimadas na Chapada dos Parecis é considerável. O número total de focos de fogo detectados na área estudada, durante o período de inverno, foi de 14.748 pontos em 1991, 5.151 pontos em 1992, 6.905 em 1993, 3.445 pontos em 1994 e finalmente 7.664 pontos, em 1995. A Tabela VIII e a Figura 22 permitem julgar a dinâmica anual e interanual das queimadas e verificar a importância da variabilidade espacial do fenômeno, sendo que, de uma maneira geral, a sua intensidade cresce na direção Norte-Sul e Oeste-Leste.

A interpretação das imagens do satélite LANDSAT-TM também mostrou informações muito reveladoras. Ela ressaltou a estrutura de uma cobertura vegetal fortemente marcada pelas queimadas, sua amplitude e sua relativa antigüidade. A vegetação guarda após o fogo uma marca profunda, visível nas imagens, mesmo após vários anos (Figura 23). Observa-se não raramente marcas de fogo de alguns quilômetros. Nas imagens analisadas, de julho de 1993, certas queimadas estendem-se por cerca de 30 km de comprimento e a nuvem de fumaça correspondente por mais 10 km complementares.

Estas queimadas são particularmente significativas no interior e nas vizinhaças das reservas indígenas, nas zonas de vegetação natural. Funcionários da FUNAI, quando interrogados, sempre minimizaram a ocorrência dessa prática também realizada pelos índios. Porém, as imagens de satélites registram dados incontestáveis. Toda a vegetação é, no interior dessas zonas, queimada ao menos uma vez a cada 5 anos.

Tabela VIII. Total anual dos pontos de fogo detectados na zona de pululações de R. schistocercoides no Mato Grosso (período 1991 a 1995).

Zona 1991 1992 1993 1994 1995 Média

1.Aldeia Espirro
2.Rio Treze de Maio
3.Comodoro
4.Campo Novo do Parecis
5.Uirapuru
6.Tangara da Serra
7.Rosa'rio Oeste
8.Paranatinga

191
743
1.192
1.294
2.128
2.335
3.112
3.753

55
420
412
565
681
910
1.152
956

155
671
454
953
1.120
914
1.298
1.340

70
399
404
565
345
460
523
679

70
542
987
1.872
812
1.246
1.246
889

108
555
690
1.050
1.017
1.173
1.466
1.523
TOTAL 14.748 5.151 6.905 3.445 7.664



Figura 22. Distribuição mensal média das queimadas detectadas pelo satélite NOAA-AVHRR sobre uma parte da área de habitat de R. schistocercoides no Mato Grosso (período 1991-1995).

Zonas: 1, Aldeia Espirro; 2, Rio Treze de Maio; 3, Comodoro; 4, Campo Novo do Parecis; 5, Uirapuru; 6, Tangará da Serra; 7, Rosário Oeste; 8, Paranatinga.



Figura 23. O impacto do fogo sobre a vegetação, revelada pelas imagens LANDSAT-TM, na região da reserva dos Parecis (análise de uma imagem LANDSAT-TM do mês de julho de 1993).

Em preto: zonas com marcas de fogo recente; em cinza escuro: zonas com marcas de fogo do ano; cinza claro: zonas com marcas de fogo mais ou menos antigo, de anos anteriores.

3.6.4.2. As queimadas e a dinâmica acridiana

As conseqüências das queimadas, particularmente sobre as zonas de vegetação natural, são:

Globalmente, portanto, o fogo apresenta aspectos bastante positivos sobre os gafanhotos e sobre a dinâmica de suas populações. Esta relação foi percebida há muito tempo pelos índios e se reflete, como já foi mencionado, na sua mitologia.

Os imigrantes, fazendeiros e pecuaristas, recentemente instalados na Chapada, indicam igualmente tal relação. Ela é facilmente constatada, durante a estação seca, quando os gafanhotos colonizam preferencialmente as zonas recentemente queimadas para aproveitar rebrotamentos que aparecem logo após o fogo. Esta distribuição dos enxames relaciona-se, evidentemente, com aquela dos bandos de ninfas jovens, encontrados principalmente nos biótopos de reprodução recentemente submetidos ao impacto do fogo.

Se o determinismo das pululações acridianas aparece essencialmente ligado ao regime das chuvas, especialmente durante os meses de agosto-setembro-outubro, as queimadas devem também ter uma importância não negligenciável devido ao fenômeno de rebrotamento da vegetação herbácea que elas provocam. Cada ano, sua importância relativa deve contribuir para favorecer mais ou menos a sobrevivência das populações acridianas na estação seca, assim como sua taxa de reprodução, modulando o efeito das condições meteorológicas.


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