3.6.3. A agricultura e a pecuária

As modificações antrópicas recentes, apesar de não terem uma importância determinante sobre as pululações do acridídeo, não devem ser negligenciadas. Estas modificações vão aumentar nos próximos anos e seria conveniente analisar detalhadamente seu impacto sobre o gafanhoto para evitar a priori eventuais especulações sobre a questão.

As interações gafanhoto-culturas são verdadeiramente complexas, algumas favorecendo o inseto, outras desfavorecendo-o enormemente. Às vezes, os resultados são surpreendentes. Acontece que elas são contrárias àquilo que uma abordagem superficial permitiria concluir. De uma maneira geral, o significado do impacto destas transformações antrópicas deve ser muito diferente daquilo que lhe é atribuído habitualmente.

3.6.3.1.As transformações agropecuárias recentes na Chapada dos Parecis

Até uma época relativamente recente, a Chapada dos Parecis (e em particular sua parte oeste) era domínio quase exclusivo dos índios. Até o começo deste século, este vasto planalto permaneceu uma região mítica, onde afirmava-se existir uma cadeia de montanhas! O Marechal RONDON foi talvez um dos primeiros a tê-la atravessado. Mesmo na década de 30, ainda representava uma região de difícil acesso (LEVI-STRAUSS, 1955). Durante muitos anos, a região foi freqüentada apenas por garimpeiros, seringueiros, boiadeiros e missionários, sem abrigar nenhuma ocupação agrícola durável.

Foi apenas no final dos anos 70, início da década de 80, que a agricultura implantou-se definitivamente na Chapada, com a chegada de muitos imigrantes vindos do sul do país. As propriedades atuais são vastas, ultrapassando freqüentemente 5.000 hectares, algumas atingindo 50.000 a 100.000 hectares, e pertencem a grandes grupos industriais ou cooperativas.

A Figura 21 mostra a evolução da ocupação das terras no Mato Grosso entre 1950 e 1985 e abrange conjuntamente os Estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Ressalta-se que ela apenas reflete imperfeitamente a rapidez dos fenômenos de colonização sobre a Chapada dos Parecis. Passa-se de uma quase ausência de culturas nos anos 70 (que as cartas do Projeto RADAM atestam muito bem) para uma grande extensão cultivada entre 1980 e 1985, quando o ritmo de ocupação agrícola das terras baixou sensivelmente.

A implantação da agricultura sobre a Chapada dos Parecis foi, portanto, rápida e intensa. Foram os imigrantes sulinos que acabaram "redescobrindo" as pululações acridianas, ao mesmo tempo que começavam a valorizar economicamente o cerrado e a desenvolver suas atividades agropecuárias.



Figura 21. Evolução da ocupação das terras no Mato Grosso (MT e MS) entre 1950 e 1985 (segundo IBGE, 1991).

Tamanho das parcelas: 1, >10.000 ha; 2, 1.000-10.000 ha; 3, 100-1.000 ha; 4, <100 ha. O traço indica a fase mais intensa de colonização agrícola na Chapada dos Parecis.


3.6.3.2. As principais culturas

Soja, arroz, milho, cana-de-açúcar e algodão são as principais culturas praticadas na Chapada dos Parecis. No Estado do Mato Grosso, após ter sido a cultura dominante até 1985, o arroz atualmente regride fortemente e tem sido amplamente substituído pela soja (Talela VI).

A importância econômica do gafanhoto do Mato Grosso advém da implantação recente (fim dos anos 70, início dos anos 80) de extensas culturas expostas às pululações do inseto, na Chapada dos Parecis. Por ser essencialmente graminívoro R. schistocercoides causa danos principalmente ao arroz, milho e cana-de-açúcar. A soja é pouco afetada, embora algum prejuízo possa ser observado se um grande número de insetos invadir a plantação.


A. Áreas em ha.

  Arroz Soja Milho Cana-de-açúcar
Antes da divisão do Estado
1980

1985

5.899.239

3.789.545

182.638

2.960.463

511.516

619.526

20.566

95.500
Mato Grosso

1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995


600.000
732.000
746.000
612.200
376.000
320.000
555.000
505.100
505.000
400.000


909.500
1.100.000
1.375.000
1.708.200
1.503.000
1.100.000
1.452.000
1.713.400
1.996.000
2.295.400


275.000
310.000
352.400
352.000
320.000
290.000
305.000
363.400
449.400
430.000


36.241
41.557
43.685
49.707
50.675
51.293
59.439
69.829
78.451
-


B. Valor médio da produção para os agricultores em 1995.

Culturas Valor (US$)
Arroz
Soja
Milho
Cana-de-açúcar
138.562.667
740.530.000
132.330.000
59.978.565

Tabela VI. Principais culturas praticadas no Mato Grosso (segundo IBGE, 1991 e AGRIANUAL, 1996).


3.6.3.3. Zonas de culturas e biótopos acridianos

A maioria das culturas implantadas na Chapada dos Parecis estão localizadas fundamentalmente nos interflúvios, nas partes mais altas com solo areno-argiloso. Por outro lado, as zonas mais arenosas, geralmente ligadas à rede hidrográfica são abandonadas e a vegetação natural permanece conservada, por causa da falta de interesse agrícola.

Dessa forma, acabaram ficando justapostas zonas cultivadas - implantadas numa parte dos biótopos onde o gafanhoto nomadiza na estação seca (zonas de campo cerrado sobre solo areno-argiloso) - e zonas tradicionais de reprodução do inseto (zonas de campo cerrado sobre solo arenoso). O resultado foi a criação de um mosaico de situações que favorecem os danos às culturas sem, no entanto, favorecer o gafanhoto. Muito pelo contrário, as culturas invadiram amplamente as zonas de nomadismo (Figura 20).

As cartas de solos e de ocupação atual das terras mostram muito claramente esse mosaico formado pelos biótopos acridianos e zonas de culturas. Muitas vezes, estas últimas ficam cercadas pelos biótopos de reprodução do inseto.

Assim, as zonas mais sujeitas aos ataques são aquelas situadas nas orlas das fazendas, no limite das zonas de culturas e zonas de cerrado e de campo cerrado. As culturas de arroz, em particular, são as mais suscetíveis aos ataques, uma vez que é a lavoura utilizada para "abrir o cerrado", conforme os próprios agricultores explicam. É freqüentemente cultivada no primeiro ano, após o desmatamento da vegetação natural, nas vizinhanças de zonas ainda intactas onde o gafanhoto se desenvolve, aumentando a probabilidade de ataque pela simples proximidade.

Apesar da introdução da agricultura, os biótopos de reprodução do gafanhoto permanecem amplamente distribuídos. Situados nas zonas de campo e campo cerrado arenosos, pouco favoráveis para a agricultura, esses biótopos ficam isolados nas partes não cultivadas das fazendas e nas reservas indígenas. É nestes locais que os gafanhotos se desenvolvem e de onde eles podem, no decorrer de seus movimentos nômades, em estágio ninfal ou adulto, invadir as culturas e causar danos. Evidentemente, somente haverá prejuízos se as culturas estiverem num estágio sensível no momento da invasão. O impacto dos insetos sobre as pastagens é crônico, mas sua incidência real ainda é muito hipotética.

De 1983 a 1988, no começo da colonização intensiva da Chapada, as culturas eram ainda pouco distribuídas em relação aos domínios do inseto - o que talvez explique a importância dos danos nos primeiros anos de cultivo, pela simples desproporção entre as áreas destinadas à agricultura e aos biótopos de reprodução do gafanhoto. A medida em que a colonização e o desenvolvimento agrícola aumentarem, os biótopos favoráveis ao gafanhoto deveriam pouco a pouco se reduzir. Entretanto, num primeiro momento, estando todas as condições ecológicas iguais em toda a parte, a importância das pululações pode não diminuir significativamente se as culturas se desenvolverem essencialmente sobre as zonas de nomadismo em estação seca e não sobre as zonas de reprodução 7.

Finalmente, o caso das pastagens merece uma menção especial. Elas são naturais ou artificiais. As primeiras correspondem às zonas de vegetação natural exploradas pela pecuária e apresentando para o gafanhoto condições muito próximas daquelas estritamente naturais. As segundas são zonas onde a vegetação natural foi substituída por gramíneas semeadas, principalmente Brachiaria ssp. Essas gramíneas são geralmente menos apreciadas pelo inseto que as gramíneas selvagens.

3.6.3.4. As práticas culturais e a dinâmica acridiana

Caso geral

Durante boa parte da estação das chuvas, os bandos de ninfas são localizados nos biótopos de reprodução e as culturas ainda não foram invadidas, existindo apenas um pouco de interferência entre o ciclo do inseto e as práticas culturais. Mas durante a segunda parte da estação chuvosa, os bandos mais ativos e desenvolvidos podem começar a invadir as zonas cultivadas, pelo simples fato de estarem próximas.

As interações são, ao contrário, mais fortes no período que vai do final da estação das chuvas ao começo da mesma estação seguinte.

No final da estação das chuvas, a colheita é geralmente seguida pelo preparo da terra e, nas zonas cultivadas, durante toda a estação seca, o solo fica muito tempo descoberto. Alguns rebrotamentos, principalmente de dicotiledôneas (não consumidas pelo gafanhoto), acabam aparecendo. As zonas cultivadas tornam-se assim desfavoráveis ao inseto, que nesta época nomadiza, pois não encontra alimentação ou, se encontra, a quantidade é reduzida.

Nestas zonas de exploração agrícola extensa, as únicas coberturas vegetais que subsistem são as pastagens artificiais e as lavouras de cana-de-açúcar, as quais são mais atraentes ao gafanhoto em estágio jovem. Porém, têm reduzida expressão espacial. Para o inseto, representam apenas uma fonte de alimentação no mínimo equivalente àquela que encontraria antes da introdução das culturas, se seu ambiente tivesse permanecido no estado natural.

No início da estação das chuvas, no mês de setembro, o solo é novamente trabalhado para a semeadura (em particular da soja, que ocorre no final do mês de outubro). Estes trabalhos acontecem no momento da maturação sexual e posturas do inseto e podem, eventualmente, se ocorrerem depois da oviposição no solo, provocar uma forte mortalidade embrionária. Entretanto, estes trabalhos são realizados normalmente fora das zonas de reprodução do gafanhoto.

O caso particular da cana-de-açúcar

A cultura da cana apresenta uma situação mais complexa, distanciando-se do esquema básico discutido acima. É conveniente ainda diferenciar as culturas implantadas sobre solo areno-argiloso (portanto sobre biótopos de nomadismo) daquelas implantadas sobre solo mais arenoso (biótopos de reprodução).

A cultura da cana em solos arenosos:

As lavouras de cana cultivadas sobre solo arenoso, correspondentes aos biótopos de reprodução do gafanhoto, em antigas zonas de campo ou campo cerrado, continuam a constituir áreas potenciais para a deposição de ootecas. As características do solo permanecem as mesmas; a alimentação constituída por plantas jovens de cana é favorável e os enxames podem ovipor sem dificuldades, principalmente no caso de lavouras jovens. Em seguida, as culturas mais desenvolvidas criam uma cobertura vegetal muito densa, o solo torna-se mais compacto e o ambiente menos propício às oviposições. Nestas lavouras mais desenvolvidas, somente as bordas e as ruas deixadas entre as parcelas podem, eventualmente, constituir possíveis sítios de reprodução.

A resultante desta transformação das zonas de campo cerrado sobre solo arenoso em culturas de cana-de-açúcar é a redução da superfície global dos biótopos de reprodução do inseto. Somente as culturas de cana do ano permanecem favoráveis (ou seja, aproximadamente, um quarto da área cultivada).

A cana sobre solo pesado argilo-arenoso:

Nestas zonas, inicialmente de campo ou campo cerrado, o solo é revolvido na época do cultivo tornando-se, temporariamente, um sítio possível para a deposição de ootecas.

No caso de outras culturas, o solo fica descoberto no momento da oviposição e fontes de alimentação são inexistentes para o inseto (desde que o período de posturas corresponda à preparação do solo para a semeadura). Mesmo que as condições do solo eventualmente favoreçam a oviposição, parece que a ausência de recursos para alimentação não estimularia a longa permanência dos enxames. No caso da cana, não somente o solo argilo-arenoso (normalmente muito compacto) foi revolvido, mas também as plantas jovens representam uma alimentação muito adequada. Os enxames que encontram-se nestas zonas podem até aproveitar para aí depositarem seus ovos. No entanto, mais uma vez, somente as culturas jovens de cana do ano seriam potencialmente afetadas.

Portanto, as culturas de cana desenvolvidas sobre solo pesado contribuem globalmente para um aumento dos biótopos favoráveis à reprodução da espécie. Poder-se-ia pensar que seria uma vantagem para o gafanhoto, pois representaria um potencial aumento de seus efetivos populacionais. Na realidade, tem-se exatamente o efeito inverso, pois essas áreas favoráveis constituem verdadeiras "armadilhas" onde o acridídeo se instala, ao invés de se dirigir às suas zonas naturais de reprodução. Esta noção de "armadilha" se explica pelo fato de que todos os enxames que se reproduzem no interior das áreas cultivadas com cana são rapidamente observados e destruídos, acontecendo o mesmo para os bandos de ninfas originados dos enxames que, eventualmente, conseguiram ovipor nessas culturas.

A situação seria evidentemente muito diferente se nenhuma operação de combate à praga fosse realizada, mas isso não é o caso. As culturas de cana estão geralmente sob controle de grandes grupos industriais produtores de álcool, que estão muito conscientes do problema e não hesitam em efetuar as operações necessárias de controle químico, muitas vezes por via aérea.

Finalmente, é conveniente considerar a importância da cultura da cana, que permanece pouco expressiva no Mato Grosso. Em 1994, para todo o Estado, havia apenas 78.451 hectares cultivados. Além do mais, o problema dos danos (e aquele da criação de biótopos "armadilhas") afeta sobretudo as lavouras jovens de menos de 1 ano (ou seja, cerca de 1/4 da área), o que não representa mais de 20.000 hectares no Estado todo e uma superfície ainda bem menos reduzida na zona de pululação de R. schistocercoides.

Assim, a cultura da cana permanece aquela onde as interações gafanhotos-culturas são as mais complexas e onde o monitoramento deve ser certamente o mais efetivo.

Conclusão

Concluindo, a agricultura foi implantada na região da Chapada dos Parecis, respeitando amplamente os biótopos de reprodução do gafanhoto, invadindo somente uma parte de seus ambientes de sobrevivência e de nomadismo em estação seca.

A redução das zonas de campo e campo cerrado (não as de "cerrado", ambiente geralmente desfavorável ao gafanhoto), devido à implantação da agricultura, tende a desfavorecer o inseto que passa a dispor, para sua sobrevivência em estação seca, de menores áreas de seu habitat natural que no passado.

Os novos ambientes, destinados a uma agricultura intensiva mecanizada, são geralmente desfavoráveis ao gafanhoto (com exceção de zonas plantadas com cana-de-açúcar e principalmente durante o primeiro ano).

3.6.3.5. A dinâmica acridiana e os riscos às culturas

Com base na melhor caracterização dos biótopos de sobrevivência/nomadismo e de reprodução do inseto e na avaliação do impacto das culturas e práticas culturais sobre as populações acridianas, pode-se precisar melhor os riscos para as lavouras, relacionando-se o calendário de desenvolvimento do inseto com aquele das culturas suscetíveis de serem atacadas (Tabela VII).

A noção de prejuízos causados pelo gafanhoto no Mato Grosso data da época da introdução da agricultura e da pecuária na região da Chapada dos Parecis, a partir dos anos 80. Evidentemente, não era possível haver danos antes disso. Muito pelo contrário. Como foi discutido precedentemente, para os índios, habitantes tradicionais daquelas terras, os gafanhotos constituem ao mesmo tempo personagem mítico e alimento.

Os danos às lavouras são limitados principalmente à estação das chuvas e são ocasionados pelas ninfas, agrupadas em bandos e com capacidade de deslocamento limitada. Os prejuízos tornam-se, então, mais freqüentes nas culturas de cereais, arroz e milho em particular, especialmente no final da estação chuvosa, assim que os bandos ninfais mais desenvolvidos adquirem capacidades de deslocamentos maiores e invadem, a partir dos biótopos de reprodução, a periferia das zonas cultivadas.

Os danos causados pelos adultos começam pricipalmente no final da estação das chuvas, pouco após a muda imaginal, no final de abril e início de maio, assim que os enxames saem das zonas de reprodução, começam a nomadizar e podem invadir as lavouras ainda não colhidas. Em setembro, no começo da estação chuvosa, as zonas de culturas estão ainda sem vegetação, além de ser a época de preparação das terras para semeadura. Em outubro, os enxames podem causar danos às culturas precoces de arroz, milho e sorgo. Entretanto, as populações de adultos baixam rapidamente e, no final de outubro, o efetivo que subsiste não representa mais um perigo real.

Na estação seca, as culturas são colhidas e o solo fica geralmente descoberto. As práticas culturais acabam por alterar desfavoravelmente os biótopos de nomadismo e de sobrevivência da espécie nesta época do ano. Os danos podem ser considerados como inexistentes, exceto nas zonas com lavouras de cana, as quais podem ser atacadas ao longo de todo este período e, mais particularmente, durante a fase de maior atividade de deslocamento dos enxames: de julho a setembro. Os cereais cultivados por irrigação na estação seca (caso muito raro) podem igualmente sofrer o impacto da passagem dos enxames.


  J F M A M J J A S O N D
Arroz
Cana-de-açúcar
Milho
Soja
Sorgo
Trigo irrigado
D
P
D
D
P
-
D
D
D
D
P
-
C
D
D
D
D
-
C
D
C
C
C
P
C
C
C
C
C
P
-
C
C
-
-
D
-
C
-
-
-
D
-
C
-
-
-
C
-
C
-
-
-
C
P
P
P
P
P
C
P
P
P
P
P
-
P
P
P
P
D
-
Fase embrionária OOOO O
Ninfas NNNNNNNNNN N N
Adultos AAAAAAAAAAAAAAAAAAA A A A

Tabela VII. Fenologia de algumas das principais plantas cultivadas na Chapada dos Parecis e relação com o ciclo de vida do gafanhoto.


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