3.6. Os biótopos acridianos e a relação homem-gafanhoto

3.6.1. O gafanhoto no seu ambiente natural

A natureza dos biótopos de R. schistocercoides pôde ser claramente estabelecido. Sua estrutura é particularmente simples na maior parte oeste da área de pululação da espécie no Mato Grosso, do rio Arinos ao rio Guaporé. A situação na parte leste (região de Paranatinga e de Canarana) apresenta-se mais complexa e mereceria investigações complementares, mesmo que nesta região ocorram pululações menos freqüentes e importantes.

Globalmente, na Chapada dos Parecis s.l., os biótopos de R. schistocercoides correspondem ao conjunto das zonas onde encontram-se formações vegetais do tipo "campo" e "campo cerrado", as quais são geralmente muito abertas e suscetíveis a queimadas regulares (cf. item 3.6.4.).

Nessas regiões de cerrados, considerando-se a natureza do solo, dois tipos de biótopos podem ser distinguidos (Figura 20 e Tabela V) :

Os biótopos de reprodução estão localizados sobre solos arenosos - solos silicosos álicos ou distróficos, correspondentes às classes AQa2, AQa13, AQd3 e AQd8 da classificação do projeto RADAMBRASIL (1982), além da classe LEd8, correspondente a uma mistura de latossolos vermelhos escuros distróficos e de areias silicosas distróficas. Estas zonas arenosas estão relacionadas à rede hidrográfica e encontram-se geralmente, na Chapada dos Parecis, nos vales (com exceção das faixas sul e oeste da Chapada, onde os solos são inteiramente arenosos em grandes extensões).

Os interflúvios, mais planos, apresentam solos mais pesados, areno-argilosos (latossolos vermelhos escuros distróficos e latossolos vermelho-amarelos distróficos, classes LEd3, essencialmente, e LEd7) (RADAMBRASIL, 1982). Estas zonas são atualmente ocupadas pelas culturas (soja, em particular). Ao contrário, os vales e seus contornos (alguns quilômetros das marginais do leito do rio), com solos arenosos, não são usualmente cultivados, excetuando-se a cana-de-açúcar.

Os biótopos de nomadismo na estação seca são constituídos tanto pelos interflúvios com solos pesados areno-argilosos, como pelos vales e seus contornos com solos arenosos. Os biótopos de reprodução constituem assim um subconjunto dos biótopos de nomadismo. Estes últimos cobrem a maior parte de zonas com vegetação de campo e de campo cerrado, excluindo aquelas com solo fortemente compactos e pedregosos.

De maio a setembro, a vegetação seca e a qualidade da alimentação disponível para o gafanhoto se degrada pouco a pouco. No entanto, no final da estação seca, se a vegetação natural das zonas de campo e campo cerrado fica globalmente dessecada, um exame mais acurado revela que, nos tufos de gramíneas, muitas partes verdes estão ainda presentes (freqüentemente de 10 a 20 %). Com a chegada das primeiras chuvas, a vegetação rebrota rapidamente.

Durante este período de estação seca, de maio a setembro, pode ocorrer alguma chuva relativamente significativa ou focos de queimadas. Os dois eventos implicam num rebrotamento muito rápido da vegetação (muito bem evidenciados pelos dados NDVI do satélite NOAA-AVHRR) e numa melhoria da qualidade nutritiva da vegetação para o gafanhoto.

Depois das características dos biótopos de R. schistocercoides terem sido definidas, a influência do homem sobre a dinâmica das populações deste inseto pôde ser melhor compreendida. É conveniente distinguir entre o uso tradicional das terras pelos índios, por um lado, e a influência recente, há menos de quinze anos, da introdução da agricultura e da pecuária. Nota-se que as relações homem-gafanhoto parecem complexas, em função da época do ano, do tipo de utilização das terras, dos sistemas de cultivo e das práticas culturais e de pecuária.



Figura 20. Estrutura esquemática dos biótopos de R. schistocercoides na parte oeste da Chapada dos Parecis.

R, biótopos de reprodução
N, biótopos de nomadismo
1, vista plana; 2, corte A-B
cc zonas de culturas
em branco: campo e campo cerrado sobre solos areno-argilosos
em cinza claro: campo e campo cerrado sobre solos arenosos
em cinza escuro: cerrado ou floresta


Tabela V. Composição granulométrica do horizonte superficial de alguns solos da área de pululação de R. schistocercoides no Mato Grosso (segundo RADAMBRASIL, 1982).

Classes Areia
2-0,05mm
Limo
0,05-0,002mm
Argila
<0,002mm
Solos dos biótopos de reprodução :
Aqd8
Aqa3
85,9
92,1
7,3
3,2
6,8
4,7
Solos dos biótopos de nomadismo em estação seca; classes acima menciodas e mais:
Led3 9,9 39,9 50,2

N.B. Dados válidos essencialmente para a região oeste da área de pululações.


3.6.2. As práticas indígenas tradicionais

3.6.2.1. O gafanhoto na cultura indígena

A importância dos gafanhotos na cultura de várias tribos indígenas da região da Chapada dos Parecis é atestada por dados antropológicos.

Os gafanhotos são um item importante na alimentação de diversas tribos de índios, particularmente os Nambiquaras e os Baiquiris. O papel desses insetos é ressaltado desde os anos 30 por LEVI-STRAUSS (1948, 1955, 1963). Mais recentemente, a partir de estudos conduzidos no final dos anos 70, SETZ (1983, 1991) mostra a importância dos gafanhotos na alimentação desses mesmos índios. Os bandos de ninfas de R. schistocercoides (na estação das chuvas) e os adultos (na estação seca) são coletados pelos índios, fazendo parte pelo menos uma vez por dia das refeições, torrados ou sob a forma de farinha. Segundo diversos testemunhos, os índios Baiquiris, na região de Paranatinga, também os consomem.

Os gafanhotos também desempenham um importante papel na mitologia de diversas tribos indígenas, em particular entre os Parecis (PEREIRA, 1986), em cujo mito de criação do mundo, o gafanhoto nasce da perna de Miore, um dos heróis míticos entre esses índios. É igualmente o gafanhoto que, por inadvertência, dá o fogo aos homens, incendiando a vegetação, desempenhado assim um papel equivalente ao Prometeu grego. Desta maneira, fica evidente, através da mitologia Parecis, que existe uma relação muita estreita e antiga entre os índios e os gafanhotos, uma espécie de convivência desde a criação do mundo (o que constitui, aliás, uma forte evidência da presença de populações significativas do inseto na Chapada, desde tempos imemoriais). Além disso, a ligação entre o fogo e os gafanhotos, indicada na mitologia, faz lembrar a importância que a prática das queimadas tem sobre a dinâmica das populações acridianas (LECOQ & PIEROZZI Jr, 1995a). Esta prática favorece, em particular, o rebrotamento da vegetação herbácea durante a estação seca e, em conseqüência, a alimentação e a sobrevivência dos insetos que passam este período no estágio adulto, esperando para se reproduzirem com a chegada das primeiras chuvas. Não se pode deixar de pensar que tal relação já tinha sido percebida há muito tempo atrás pelos índios, para quem as queimadas constituem uma prática tradicional. Este fato conduziu à realização de investigações mais precisas sobre a importância deste fenômeno (item 3.6.4.).

3.6.2.2. O problema das reservas indígenas no quadro do controle acridiano

Em 1983, considerou-se que a invasão de R. schistocercoides era originada das reservas indígenas Parecis e Nambiquaras. Os responsáveis pelas operações de combate programaram a realização de tratamentos no interior dessas reservas, visando a exterminação das populações acridianas que, segundo eles, ameaçavam migrar em direção às zonas de culturas vizinhas. Concluiu-se, então, que a aparente invasão em direção ao leste foi conseqüência da impossibilidade de realizar os tratamentos em tais áreas indígenas (OLIVEIRA, 1987).

Na realidade, como já foi discutido acima, não houve nenhuma invasão, nem deslocamento dos enxames em direção ao leste 6. Desde há muito tempo, as pululações acontecem em todo o conjunto de biótopos da espécie sobre a Chapada dos Parecis, dependentes das condições ecológicas locais.

Além do mais, os biótopos de reprodução do gafanhoto estão amplamente distribuídos pelas zonas de campo cerrado sobre solos arenosos e não especialmente localizados no interior das reservas indígenas. Relembra-se aqui as idéias de TEIXERA et al. (1995) para quem estas reservas representam apenas uma pequena porção do vasto ecossistema constituído pela Chapada dos Parecis. Na verdade, todas as partes não cultivadas, no interior das próprias fazendas (seja por razões de fertilidade, seja para respeitar a regulamentação que obriga conservar uma parte da vegetação natural) constituem um reservatório para o inseto bem mais próximo das culturas e bem mais ameaçador que as reservas indígenas. Ainda mais que nas fazendas cultivam-se sobretudo os biótopos de nomadismo, deixando em grande parte intactos os biótopos de reprodução.

Enfim, a fraca capacidade de migração dos enxames faz com que, na maior parte do tempo, as culturas sejam ameaçadas pelos gafanhotos oriundos dos biótopos situados nas vizinhanças imediatas às fazendas, antes de serem ameaçadas por aqueles que se desenvolvem nas reservas indígenas.

Apesar de todas estas restrições, e dentro do contexto ecológico evocado no item 3.6.1., é evidente que as zonas indígenas Parecis, Nambiquaras e Baiquiris representam áreas significativas de biótopos favoráveis a R. schistocercoides e que as práticas indígenas tradicionais contribuem largamente para manutenção das condições ecológicas favoráveis ao gafanhoto. Apenas o território dos Parecis cobre aproximadamente 1 milhão de hectares e abrange numerosas zonas favoráveis a R. schistocercoides, sendo facilmente identificadas pela interpretação de imagens de satélite.

As reservas representam apenas algumas zonas de reprodução do gafanhoto entre outras, mas constituem áreas onde tratamentos não podem ser realizados e onde o inseto pode continuar a proliferar tranquilamente. A proximidade destas reservas traz, assim, um risco suplementar às culturas. A análise da distribuição espacial das reservas indígenas e dos pontos críticos do problema acridiano na Chapada é particularmente interessante.

Na parte oeste da Chapada, a extensão das reservas é muito vasta e as grandes superfícies cultivadas, sensivelmente orientadas na direção N-S, alternam-se com as extensas áreas das reservas indígenas, em particular Parecis e Nambiquaras. Em função de sua localização geográfica em relação às reservas, a zona de culturas agrícolas ao redor de Campo Novo do Parecis tem grandes chances de ser invadida por enxames provenientes da reserva dos Parecis, a oeste. Contrariamente, a zona cultivada, centrada sobre o eixo Uirapuru-Campos de Julho pode ser invadida tanto por enxames provenientes do oeste (reserva dos Nambiquaras) como do leste (reserva dos Parecis). Mais a leste, na região de Paranatinga, Canarana e Nova Xavantina, as reservas indígenas são menores e mais dispersas e o problema acridiano é menos freqüente.

Tudo isso não significa absolutamente que os enxames que afetam as zonas cultivadas vêm unicamente dessas reservas; sempre existe nas vizinhanças, ou mesmo dentro das propriedades, zonas de reprodução capazes de produzir enxames: em janeiro de 1996, por exemplo, uma prospecção muito rápida permitiu detectar uma centena de bandos de ninfas numa área de campo cerrado de 3 x 3 km, nos limites das culturas da destilaria ALCOMAT, na região de Uirapuru.

Concluindo, mesmo que as reservas indígenas não constituam a única fonte dos enxames invasores das áreas cultivadas, mesmo que o problema acridiano no Mato Grosso seja muito mais local do que aparenta e que as ações de luta preventiva no entorno das fazendas devam ser privilegiados, as reservas indígenas constituem inegavelmente reservatórios potenciais do inseto. Em certos anos, quando as condições ecológicas favorecessem particularmente a proliferação do gafanhoto nestas zonas, seria necessário fazer baixar o nível dessas populações. Seria muito conveniente que as áreas das reservas situadas nas vizinhanças das fazendas pudessem ser incluídas nos programas de monitoramento e controle da praga. Evidentemente, somente métodos não químicos e seguros para o ambiente e saúde humana deveriam ser aí utilizados.

De qualquer maneira, este aspecto do problema é certamente difícil de regulamentar e não se apresenta como prioritário. Outras medidas, mais urgentes e mais localizadas, podem ser tomadas ao nível das propriedades e seus limites, visando maior eficácia do controle deste gafanhoto (cf. item 4.).


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