3.3.3. Gregarização e polimorfismo fasário

O marcante comportamento gregário de R. schistocercoides trouxe uma indagação sobre sua condição, em relação à classificação usualmente empregada para espécies acridianas em outras regiões do mundo. O problema era classificá-la como sendo um simples "gafanhoto" ("sauteriaux" em francês ou "grasshopper" em inglês) ou uma espécie de "locusta" ("locuste" em francês ou "locust" em inglês).

Esta distinção se faz em função do fenômeno de transformação fasária, observada em algumas espécies de outros países. Os acridídeos que apresentam tal fenômeno, denominados então "locustas", têm duas fases bem distintas - solitária e gregária - cada uma delas com características morfológicas, pigmentares, biológicas, ecológicas, fisiológicas e de comportamento bastante diferentes.

Os argumentos existentes até o início deste projeto, com relação a tal classificação, não eram sustentados por dados consistentes. Avaliações morfométricas clássicas (E, comprimento do élitro; F, comprimento do fêmur posterior; C, largura máxima da cabeça - cf. Tabela II) foram então realizadas em mais de 2.000 indivíduos coletados da natureza em diversas localidades da Chapada dos Parecis e oriundos de populações de densidades muito variadas.

Os resultados desses estudos indicaram que todas as populações estudadas (não importando se de densidade forte ou fraca, ano ou região de proveniência) eram muito homogêneas entre si, tanto morfologicamente como do ponto de vista da pigmentação.

Assim, ficou demonstrado que R. schistocercoides não apresenta fenômeno de polimorfismo fasário e que esta espécie, apesar de seu comportamento gregário extremamente evidente, não pertence à categoria das locustas e deve ser considerada como "gafanhoto".

3.3.4. Maturação sexual das populações e determinismo das pululações

O estudo da maturação sexual de R. schistocercoides teve uma importância especial, no contexto deste projeto, uma vez que permitiu compreender melhor certos aspectos chaves do determinismo de suas pululações.

Dos estudos realizados, concluiu-se que a maturação sexual das populações parece ser induzida independentemente das condições pluviométricas. Provavelmente existe uma diapausa imaginal, que se finaliza em data fixa. A maturação sexual parece iniciar-se sistematicamente na segunda quinzena do mês de agosto, antes mesmo das primeiras chuvas (LECOQ & LAUNOIS-LUONG, 1994; LAUNOIS-LUONG & LECOQ, 1994, 1996).

Um determinismo fotoperiódico da maturação sexual pode ter implicações significativas na explicação das pululações desta espécie. Como a maturação inicia-se em data fixa, as populações acridianas podem encontrar-se em condições ecológicas radicalmente diferentes de um ano para outro, o que traz conseqüências importantes em relação à sobrevivência do inseto em estação seca, à fecundidade das fêmeas e ao desenvolvimento embrionário.

O período de transição da estação seca para a estação chuvosa, em agosto e setembro revela condições ecológicas variáveis de um ano para outro, particularmente no caso da pluviometria e da amplitude das queimadas no cerrado.

Na Chapada dos Parecis, os meses da estação seca - maio a setembro - apresentam a maior variabilidade pluviométrica interanual. Assim, a pluviometria média mensal em agosto na região de Uirapuru (posto meteorológico da ALCOMAT) é de 24,9 ± 79,2 mm e em setembro de 31,4 ± 50,1 mm. Dito de outro modo, a pluviometria destes dois meses pode ser nula ou ultrapassar 100 mm, ou seja, os níveis de chuvas podem garantir um bom nível de reprodução das populações acridianas.

Nesta mesma época, as queimadas também têm uma amplitude interanual muito variável. Elas provocam, em plena estação seca, uma reposição da vegetação bastante favorável à alimentação dos gafanhotos e, em conseqüência, à sua sobrevivência, às taxas de funcionamento ovariano e ao número de ovos produzidos.

Como a maturação sexual inicia-se em data fixa, de um ano para outro ela desenvolve-se sob condições ecológicas muito variáveis. Isto tem as seguintes repercussões importantes:

A variabilidade interanual das queimadas e da pluviometria no decorrer dos meses de agosto e setembro deve modular grandemente o nível das populações acridianas, explicando os ciclos de pululações.

Estas considerações têm implicações práticas diretas sobre a organização de estratégias de controle do inseto. O monitoramento das condições ecológicas no período final da estação seca e começo da estação chuvosa impõe-se como muito importante. Deveria ser objeto de acompanhamento sistemático afim de relacioná-la às populações ninfais que se desenvolvem na estação das chuvas. A inexistência de uma rede de estações meteorológicas poderia ser compensada pelo uso de dados de sensoriamento remoto para o monitoramento fenológico das zonas de cerrado que servem de biótopos de reprodução para o gafanhoto.

3.3.5. Inimigos naturais

A influência dos fatores bióticos de regulação da dinâmica das populações acridianas, como já foi anteriormente mencionado, geralmente é secundário quando comparado aos fatores abióticos (meteorológicos, em particular).

Assim como para outras espécies de gafanhotos, a lista de inimigos naturais de R. schistocercoides é extensa. Os pássaros são os mais freqüentemente citados, talvez por serem mais visíveis. Às vezes, bandos de garças são observados alimentando-se de ninfas ou de adultos jovens do inseto. O seu impacto sobre as populações do gafanhoto pode ser significativo, mas muito pontual. A tentativa de liberação de galinhas-d'angola no cerrado, para controle das pululações acridianas (FORNARI, 1986) demonstram um ato de boa vontade louvável, assim como um completo desconhecimento da ecologia do acridídeo.

Muitos outros inimigos naturais são igualmente observados no campo. Formigas, em particular, parecem ter uma atividade predadora muito intensa sobre bandos de ninfas, durante toda a estação das chuvas. Ataques de Prionyx thomae (Fabricius) [Hymenoptera, Sphecidae], contra R. schistocercoides, foram constantemente observados. O comportamento de ataque e de nidificação desta vespa foi descrito, assim como as reações de defesa do gafanhoto. O papel deste himenóptero como eventual agente de controle das populações acridianas foi discutido. Nada justifica, até o presente momento, as alegações de que P. thomae seria potencialmente um agente de controle biológico promissor como foi suscitado por certo tempo no passado (LECOQ & PIEROZZI Jr, 1995b).

A única perspectiva realista de utilização de inimigos naturais para controle deste gafanhoto reside atualmente no emprego de biopesticidas a base de esporos de fungos deuteromicetos entomopatogênicos, os quais têm sido estudados já há alguns anos, em particular na África (LOMER & PRIOR, 1992; PRIOR, 1992; PRIOR & GREATHEAD, 1989). No Brasil, as linhagens de Metarhizium flavoviride e de Beauveria bassiana são atualmente estudadas na Embrapa-CENARGEN (FARIA & MAGALHÃES, 1993; MAGALHÃES & GAMA, 1995). As pesquisas realizadas já confirmaram o grande potencial destes fungos para o controle das pululações acridianas. No entanto, a seleção de uma linhagem adequada adaptada ao gafanhoto do Mato Grosso e às condições ecológicas nas quais ele vive, assim como a definição de formulações e de um produto comercial, ainda necessitam de muitas pesquisas.

Atualmente, estes produtos constituem, a única alternativa realista para substituir, ao menos parcialmente, os inseticidas clássicos. Eles são menos nocivos para o ambiente, podendo ser eventualmente utilizados nas reservas indígenas, que constituem, entre numerosos outros, apenas um dos reservatórios naturais do gafanhoto e onde os tratamentos clássicos são geralmente interditados. Enfim, os bioinseticidas representam, uma solução de escolha para tratamentos preventivos preconizados no quadro da estratégia de controle da praga proposta por este projeto, podendo ser realizados fora das zonas de culturas, durante a maior parte da estação das chuvas, de outubro a abril (cf. item 4.).

3.3.6. Policromatismo verde-marrom e geofagia

O acompanhamento da pigmentação de R. schistocercoides (em condições naturais) permitiu demonstrar uma variabilidade pigmentar significativa para a espécie e evidenciar um caso de polimorfismo cromático verde-marrom extremamente original, o qual não tinha sido até então mencionado (LECOQ & PIEROZZI Jr, 1996a).

Ficou demonstrado que a pigmentação verde, nesta espécie, é muito mais freqüente que se podia supor. A porcentagem de adultos verdes ou apresentando certas partes do tegumento tingidas de verde varia sazonalmente ao longo de uma mesma geração, em relação à fenologia das populações e, muito particularmente, em relação ao estado de maturação sexual dos indivíduos 2. A mudança de pigmentação mais significativa ocorre no mês de setembro onde, paralelamente à maturação sexual, os indivíduos passam progressivamente da cor marrom para a verde (Figura 15).

Ressalta-se, ainda, em relação a este inseto, um caso de geofagia (consumo de terra em quantidade significativa), extremamente original entre os acridídeos. Este comportamento, cuja explicação permanece desconhecida, é particularmente extraordinária pela sua amplitude. Os adultos e ninfas consomem terra em quantidades às vezes significativas, mesmo havendo vegetação verde nas proximidades (LECOQ & PIEROZZI Jr, 1996a).



Figura 15. Evolução da porcentagem de adultos verdes no conjunto de indivíduos de uma mesma geração (segundo LECOQ & PIEROZZI Jr, 1996a).

A, adultos verdes
B, fêmeas imaturas
C, fêmeas em vitelogênese que ainda não fizeram posturas
D, fêmeas que já fizeram posturas
Histograma: pluviometria em mm (médias mensais para o período 1983-93 na estação da COPRODIA, município de Campo Novo do Parecis);
Ninfas, período de presença de ninfas; Adultos, período de presença de adultos


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