2. A NATUREZA DO PROBLEMA


2.1. As pululações acridianas

A partir de 1983, pululações de uma espécie de gafanhoto trouxeram sérios problemas às zonas recentemente cultivadas e economicamente valorizadas dos estados do Mato Grosso e Rondônia, infestando uma grande região compreendida entre os paralelos 12° e 15° Sul e os meridianos 52° e 61° Oeste (LECOQ, 1991). Estas zonas são, essencialmente, regiões de cerrado onde a vegetação natural foi substituída por culturas industriais de soja (principalmente), cana-de-açúcar, arroz e milho. A espécie de gafanhoto foi identificada como Rhammatocerus schistocercoides (REHN 1906) [Orth., Acrididae, Gomphocerinae] (CARBONELL, 1988).

Esta espécie, até então conhecida unicamente pela comunidade científica e mencionada na literatura como oriunda do Mato Grosso e regiões vizinhas (REHN, 1906; CARBONELL, 1988) parece ter uma distribuição geográfica bem mais ampla, estando presente em uma grande parte das regiões de savanas da América do Sul e Central. Recentemente, pululações têm sido sinalizadas também na Colômbia.

No Brasil, estas pululações são localizadas fundamentalmente no Estado do Mato Grosso, na faixa de cerrado situada imediatamente ao sul das zonas de floresta amazônica, estendendo-se da fronteira com Rondônia, a oeste, até o vale do Rio Araguaia, a leste, abrangendo a região da Chapada dos Parecis sensu lato.

Um programa nacional de combate ao gafanhoto foi realizado em 1986 pelo governo brasileiro e o "gafanhoto do Mato Grosso" constituiu uma de suas principais preocupações (BARRIENTOS, 1995; COSENZA et al., 1994; CURTI & BRITTO, 1987).

Foram realizadas campanhas expressivas de tratamentos, inicialmente sob a responsabilidade do Ministério da Agricultura e do Programa Nacional de Combate ao Gafanhoto, sendo em seguida continuadas pelos próprios agricultores (BARRIENTOS, 1992a, b, 1993; COSENZA, 1985; 1987; COSENZA et al., 1990; FAO, 1986; LAUNOIS, 1984; McCULLOCH, 1986a, b).

Estas pululações são, em certos anos, particularmente significativas, tendo conseqüências tanto econômicas como ambientais (ZAHLER, 1987). Nos últimos 15 anos (desde a forte expansão da agricultura na região), as pululações mais fortes foram registradas entre 1984 e 1988 e, ainda que um pouco mais fracas, em 1992 e 1993 (Figura 1).

O problema parece crônico e as estratégias atuais de combate são pouco satisfatórias.

Na verdade, todas as zonas de cerrado da Chapada dos Parecis sensu lato entre os paralelos 12° e 15° Sul estão permanentemente envolvidas, abrangendo aproximadamente 20 milhões de hectares. Nestas regiões, as pululações ocorrem em áreas recentemente valorizadas e com alto potencial agrícola. A cultura do arroz, mais atacada, foi durante muito tempo a principal do Estado, com cerca de 6 milhões de hectares plantados. O milho e a cana-de-açúcar são igualmente afetados, assim como a soja. Esta última tornou-se a principal cultura do Estado e é atacada em menor grau, pois normalmente não é consumida pelo inseto graminívoro.

A importância econômica desta espécie de inseto é real, embora flutuante de um ano a outro e difícil de se avaliar. Para o ano de 1984, estimou-se perdas de 84 milhões de litros de álcool, 600.000 toneladas de soja, 75.000 toneladas de arroz e 22.500 toneladas de milho (CURTI e BRITTO, 1987). Mesmo sendo estimativas pouco precisas, estas cifras dão uma idéia da amplitude do problema em anos de grandes pululações.

De 1985 a 1989, 5 milhões de dólares foram gastos para o combate da praga no Mato Grosso, sendo 41% deste montante para pulverizações aéreas e 43% na compra de inseticidas e prestação de serviços (Folha do Estado, Cuiabá, 13/3/1995). Dezenas de milhares de litros de inseticida foram utilizados, principalmente de fenitrothion e malathion (Tabela I).

O problema torna-se mais complexo pela coexistência, dentro das áreas de pululações acridianas, de dois modos fundamentalmente diferentes de vida e ocupação das terrras : aquele dos imigrantes, agricultores ou pecuaristas, vindos essencialmente dos estados do sul do Brasil e outro tradicional, das tribos indígenas locais (Parecis, Nambiquaras, Baiquiris, principalmente). Para os primeiros, o gafanhoto é uma praga a ser combatida por todos os meios; para os índios é um elemento natural do ecossistema, às vezes uma criatura mitológica, freqüentemente um elemento importante da dieta alimentar cotidiana.



Figura 1. Zonas de pululação de R. schistocercoides no Mato Grosso.

Em branco: zonas florestais. Em cinza escuro: zonas de savanas (campo e campo cerrado), constituindo as principais áreas de pululações do gafanhoto. Em cinza claro: zonas de savanas menos favoráveis.

GO, Goiás; MT, Mato Grosso; RO, Rondônia; TO, Tocantins.

Rios: 1, Juína ; 2, Juruena; 3, Papagaio; 4, Sacre; 5, do Sangre; 6, Sacariuína; 7, Arinos; 8, Xingu; 9, das Mortes; 10, Araguaia; 11, Paraguai; 12, Guaporé.



"As culturas começaram na região em 1980, com 300 hectares de cana (12.000 ha atualmente). Na época, não havia gafanhotos. As primeiras nuvens de gafanhotos foram vistas mais exatamente no dia 27 de agosto de 1984, dirigindo-se em direção ao leste e nordeste e parecendo vir da reserva indígena dos Parecis. A situação era impressionante. Durante três dias, em 3 km de extensão, enxames passaram sobre a estrada. Tratamentos foram efetuados com sucesso usando-se Malathion e Sumithion."

Maquio Ishiguia, 11 de maio 1993
Destilaria COPRODIA , Campo Novo do Parecis, MT


Tabela I. Resultados das campanhas de tratamentos aéreos antiacridianos no Mato Grosso de 1984 a 1988 (segundo CURTI & BRITTO, 1987 e KUFFNER, 1988).
Anos 1984 1986 1987 1988
Zonas tratadas (ha) 100.000 245.000 99.387 71.303
Inseticidas utilizados (litros):
Fenitrothion UBV
Malathion UBV

50.000
*

67.310
20.400

26.591
10.750

21.887
*
Horas de vôo:
Avião
Helicóptero

500
*

835
*

264
1.031

200
581
Custo da campanha (US$) 1.710.462 1.189.487 1.146.262 *

(* ausência de dados; dados do ano de 1985 não disponíveis)

2.2. As hipóteses vigentes

R. schistocercoides era, até o começo dos anos 80, uma espécie muito pouco conhecida, não tendo jamais causado algum problema. Suas primeiras pululações e danos foram observados pouco tempo depois da valorização agrícola da região em questão. Assim, inicialmente, levantou-se a explicação de que tais pululações eram conseqüência das modificações significativas causadas pela agricultura ao ambiente, no período de poucos anos.

A hipótese vigente, desde o começo dos problemas acridianos no Mato Grosso, supunha a criação de novos biótopos favoráveis ao gafanhoto, devido ao desmatamento intenso das terras, essencialmente cerrados, e sua transformação em zonas de culturas ou pastagens. Evocava-se, igualmente, um desequilíbrio ecológico que teria provocado uma redução significativa dos inimigos naturais dos gafanhotos, favorecendo suas pululações (ZAHLER, 1987; BARRIENTOS, 1995). Os próprios imigrantes apareciam, então, como os primeiros responsáveis pela praga que os afetava.

Por outro lado, os agricultores consideravam que os gafanhotos se reproduziam principalmente nas zonas de vegetação natural e, em particular, nas reservas indígenas, onde era impossível realizar tratamentos com inseticidas. A reserva dos índios Parecis era repetidamente incriminada, sendo acusada de ser a responsável pela origem da invasão, a qual teria, em seguida, propagado muito rapidamente em direção ao leste do Estado. Segundo esta hipótese, os primeiros ocupantes dessas terras eram, os principais responsáveis pelo problema. Ao considerar que R. schistocercoides possuísse uma grande capacidade de migração, a existência de propagação aparente em direção ao leste fazia deste inseto uma ameaça para outros estados vizinhos (Goiás, Tocantins etc.). Isto explica o porque da implementação de uma estratégia de combate, visando impedir sua suposta marcha em direção ao leste (CURTI & BRITTO, 1987; COSENZA et al., 1990).

Estas hipóteses referentes à origem das pululações e à dinâmica de invasão alimentaram uma polêmica sobre o papel dos agricultores e dos índios, além de questionamentos sobre a maneira como os tratamentos foram realizados (OLIVEIRA, 1987 ; SANTOS, 1987).

Entretanto, nenhuma das hipóteses evocadas foram cientificamente argumentadas. Isto não impediu de serem regularmente retomadas, nos anos seguintes, em particular pela mídia, e de tornarem-se, pouco a pouco, um tipo de verdade. Podem ainda hoje ser encontradas, eternamente repetidas, em diferentes artigos de imprensa ou mesmo na literatura científica.

2.3. A plataforma de partida

Preliminarmente aos trabalhos do projeto, uma ampla pesquisa bibliográfica foi realizada, visando levantar o conhecimento existente sobre o gafanhoto do Mato Grosso. Na verdade, tal conhecimento demonstrou-se bastante reduzido (DURANTON & LAUNOIS-LUONG, 1987, 1988). O número de publicações científicas sobre o assunto é bastante restrito. As informações foram encontradas principalmente em relatórios de organizações nacionais e internacionais, assim como em numerosos artigos de jornais e de revistas (resultantes de múltiplas entrevistas e enquetes in loco), sem falar de alguns programas de televisão que foram consagrados ao assunto, dos quais foi possível obter uma cópia.

Este trabalho resultou em um livro, que apresenta uma síntese crítica de diferentes documentos disponíveis no início do projeto (LECOQ & PIEROZZI Jr, 1994a). Alguns assuntos abordados foram: histórico das pululações de gafanhotos no Brasil; sistemática e identificação de Rhammatocerus schistocercoides; área de distribuição, morfologia e pigmentação do inseto; possibilidade de existência de um fenômeno de polimorfismo fasário; biologia, ecologia e determinismo das pululações; importância econômica; estratégias e métodos de combate; pesquisas em curso e a serem desenvolvidas. O documento foi completado por uma bibliografia comentada, apresentada cronologicamente, permitindo seguir a evolução do problema.

Este inventário de conhecimentos constituiu a plataforma a partir da qual as hipóteses do projeto foram construídas. Estas hipóteses retomavam em grande parte aquelas evocadas anteriormente, em particular as referentes ao papel do desenvolvimento da agricultura. Posteriormente pôde-se apresentar uma contra-argumentação baseada nos resultados obtidos ao longo dos quatro anos de execução do projeto.

Estes resultados e suas implicações práticas são apresentados suscintamente a seguir. Para maiores detalhes, pode-se reportar-se às diferentes publicações e relatórios produzidos pelo projeto.


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